Dilemas morais no filme A Grande Aposta

*Por Valdemir Pires 

O filme A Grande Aposta, de Adam McKay, traz para a telona o livro de Michael Lewis, The Big Short: Inside the Doomsday Machine (publicado no Brasil como A Jogada do Século), a respeito da crise financeira iniciada nos Estados Unidos em 2008, derramando-se por todo o mundo, com efeitos que ainda perduram e provocam perplexidade, além de muito choro e ranger de dentes.

Se a intenção do filme foi ser didático (o que às vezes parece), foi mal, mesmo com as cenas da pirâmide de tocos de madeira representando títulos de dívida de acordo com as classificações de risco (que rui) e da beldade na banheira explicando o que é merda no mercado financeiro (Margot Robbie). Ninguém, leigo em Economia ou autodidata em finanças, sai da sala entendendo os meandros da crise financeira, a não ser no seu aspecto de fruto de muita sacanagem: gente procurando ganhar dinheiro a rodo, com pouco trabalho e muita esperteza, às custas de quem sua a camisa para viver, no máximo, no padrão de classe média, nem sempre americana. Inside job (Trabalho interno, na versão brasileira), de 2010 (direção de Charles H. Ferguson), é mais denso em informações e “mais explicadinho”, além de explorar a o alastramento da crise mundo afora. Aliás, é recomendável vê-lo antes de A grande aposta: complementam-se, de algum modo.

O mais interessante da trama que costura o filme é o confronto de modos de ver e se posicionar diante de situações que impõem dilemas morais severos. A grande questão é saber até que ponto é possível e admissível ganhar dinheiro trapaceando. Tendo o mercado financeiro e imobiliário americanos se transformado num verdadeiro cassino, com os títulos poderes (subprimes) se transformado em alicerces de jogadas arriscadas e malandras, escondidas em produtos “criativos”, vendidos pelos bancos e seguradoras, sem limites nem cuidados, os investidores, aplicadores, corretores, banqueiros, e suas organizações e entidades, passaram a atuar como especuladores sem qualquer noção de responsabilidade e consequência. E os crédulos “trouxas” – gente em busca de financiamento para casa própria, algumas pessoas que aproveitavam as facilidades creditícias para viver acima de suas posses, gestores de fundos de pensão procurando garantir seus beneficiários na aposentadoria etc. – sendo levados de roldão, descobrindo o logro só depois de Inês já morta.

O Dr. Michael Burry (Christian Bale) personifica o sujeito lógico que, quase desprovido de habilidades de relacionamento humano, altamente envolvido com a matemática – um “cabeça de planilha” quase autista – percebe que o sistema vai quebrar. Aposta tudo nisso, amarga a descrença e a pressão por um tempo; e termina ganhando. A mensagem: lógico que não poderia dar certo, era tudo como uma dessas “pirâmides financeiras”, em que o último a embarcar perde tudo o que pôs (na busca pueril de multiplicação espetacular, rápida e fácil da riqueza), porque os primeiros levaram tudo embora antes.

Já Mark Baum (Steve Carell) representa o apostador com escrúpulos, pelo menos um mínimo (vivendo por isso altamente estressado, o tempo todo, consciência pesada). Recusa-se até o final a crer que a trapaça se alastrara até o último poro do sistema. Só vende seus papéis depois de remoer até o osso a culpa por estar ganhando às custas do desastre para muita gente. A mensagem: “Caramba! Não acredito que vocês todos foram tão longe”. Chega a dialogar asperamente com uma técnica de agência de avaliação de crédito que, ao fim, lhe diz: “Olha, se eu não dou triplo A para todos os títulos que aparecem por aqui, a agência concorrente, ali na esquina o faz. Você quer o quê?”

No contraponto a Mark, dois garotos aventureiros em busca de fermento para seus bolinhos de dólares (típicos de Wall Street) – Charlie Geller (John Magaro) e Jamie Shipley (Finn Wittrock), agindo nos interstícios do sistema: não estão nem aí para o que acontece fora de seus bolsos quando arriscam seus caraminguás. Quando ganham alto, dançam feito crianças, na rua, terminando admoestados por quem os estava ajudando, Ben Rickert (Brad Pitt): “Por acaso estão felizes por ganhar, enquanto milhões estão perdendo seus empregos e seus lares?” (Valeu, Brad, ou melhor, Ben, mas você voltou do mato por quê, depois de ter fugido desse mundo selvagem das operações bancárias e financeiras?).

Infelizmente, o filme ainda não acabou… embora os dilemas morais estejam, já, aparentemente, esquecidos, outra vez…



Valdemir Pires é professor e pesquisador do Departamento de Administração Pública da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui